Livro mostra que o futuro já está sendo construído por arquitetos e designers inspiradores em todo o mundo.
O auditório de Plasencia, na Espanha, é feito de um material leve e inovador — Foto: Iwan Baan via BBC
Que tal um tijolo reciclado? Ou um diagrama explicando como funciona um sistema de inteligência artificial?
Você pode se surpreender ao encontrar as duas propostas acima na obra Radical Architecture of the Future (“Arquitetura Radical do Futuro”, em tradução literal), novo livro da curadora e editora Beatrice Galilee, que apresenta 79 projetos de arquitetos, artistas, cineastas, designers de games, pesquisadores, entre outros.
Estes projetos indicam “um possível rumo para o futuro da arquitetura”, explica Galilee em entrevista à BBC Culture por videochamada.
Ela descreve o livro como um “farol”, um sinal de esperança em meio à escuridão da crise climática e das desigualdades sociais que afetam todo o planeta.
Longe de ser uma lista de sonhos utópicos, cada um dos projetos apresentados no livro foi concluído.
São estudos de caso existentes que demonstram que o futuro já está sendo construído por arquitetos e designers inspiradores em todo o mundo.
“Precisamos de boas ideias e de imaginação, e acho que a área de projetos arquitetônicos é um bom lugar para buscar isso”, diz Galilee à BBC Culture.
Projete com, não contra, a natureza
Uma das figuras mais influentes da arquitetura hoje não é arquiteto.
A paisagem onírica do jardim aquático Art Biotop em Nasu, no Japão, oferece habitats em miniatura para a vida selvagem — Foto: Junya.Ishigami + Associates via BBC
Donna Haraway é uma filósofa feminista cujas ideias sobre como interagimos de forma mais igualitária com o mundo natural estão mudando a maneira como projetamos edifícios.
Galilee vê sua influência no trabalho de arquitetos como Junya Ishigami, cujo jardim aquático Art Biotop em Nasu, no Japão, foi construído deslocando 318 árvores de um campo vizinho para evitar sua destruição.
Da mesma forma, a mesquita Bait Ur Rouf, projetada pela arquiteta Marina Tabaassum, em Dhaka, capital de Bangladesh, foi desenhada para atrair a luz do sol e criar padrões impressionantes dentro do espaço sagrado.
Reduzir, reutilizar, reciclar
Estamos acostumados a reciclar em casa, mas como fazemos isso na escala de um prédio?
Escritórios de arquitetura como o Rotor, com sede em Bruxelas, e o Lacaton & Vassal, em Paris, vêm desenvolvendo maneiras de reduzir o desperdício de materiais ao mesmo tempo em que produzem belos edifícios — algo de grande importância, uma vez que o setor de construção é responsável por quase 40% das emissões de CO2 globalmente.
O Lacaton & Vassal recebeu recentemente o Pritzker Prize, o prêmio de maior prestígio na área de arquitetura, em reconhecimento aos seus projetos que renovam, ao invés de demolir, edifícios de habitação social na França.
Enquanto isso, o Rotor montou seu próprio negócio de reciclagem de material de construção.
“É uma espécie de minirrevolução muito sensata e prática”, diz Galilee.
Inovação de materiais
O uso de materiais inovadores pode ajudar a reduzir o impacto ambiental da construção.
O projeto The Color (ed) Theory apresenta uma série de casas pintadas em cores vivas no sul de Chicago — Foto: Amanda Williams via BBC
Por exemplo, o etileno tetrafluoretileno (ETFE) é um tipo de plástico leve que pode ser usado para resfriar edifícios, como o Auditório e Centro de Congressos de Plasencia, projetado pelo escritório de arquitetura SelgasCano, na Espanha.
Dito isso, às vezes os materiais mais adequados são aqueles disponíveis localmente.
O Atelier Masōmī e o Studio Chahar, responsáveis pelo projeto do Complexo Secular e Religioso em Dandaji, no Níger, usam tijolos de terra prensada e outros materiais coletados em um raio de cinco quilômetros do local.
O Atelier Masōmī é “campeão em respeitar as tradições da arquitetura de barro da região, reduzindo ou eliminando materiais de construção sintéticos importados ou de padrão ocidental”, escreve Galilee.
Os leitores do livro Radical Architecture podem se surpreender ao encontrar um projeto fotográfico sobre a crise da água em Flint, no estado americano de Michigan, em uma publicação sobre arquitetura.
“Não dá para diferenciar as cidades em que vivemos dos valores que as projetaram“, explica Galilee, se referindo ao racismo e à segregação inerentes ao planejamento urbano de muitas cidades nos Estados Unidos, onde ela mora.
A série de fotografias Flint Is Family Part I, da artista visual LaToya Ruby Frazier, destaca o impacto dos ambientes construídos no florescimento ou na destruição dos meios de subsistência; enquanto o projeto The Color (ed) Theory, da artista visual Amanda Williams, apresenta uma série de casas distintamente pintadas no sul de Chicago, cada uma delas prevista para ser demolida, tornando visível a dinâmica de desenvolvimento carregada de questões raciais em seu bairro.
O artista Ou Ning trabalhou com a comuna de Bishan na província de Anhui — Foto: Zhu Rui via BBC
Vivendo juntos
Além de destacar as injustiças, os projetos apresentados no livro demonstram como os arquitetos podem influenciar a forma como vivemos juntos e construímos comunidades mais justas.
“Granby Four Streets” é um projeto em Liverpool, no Reino Unido, de autoria do coletivo Assemble, que restaurou conjuntos habitacionais abandonados e criou espaços para oficinas e um jardim compartilhado em colaboração com uma Community Land Trust.
“Adoro esta ideia dos arquitetos como agentes de mudança e pessoas com visões e ideias que vão além de apenas responder aos clientes,” afirma Galilee.
Luxo público
Grandes lugares devem ser acessíveis a todos, e o livro Radical Architecture destaca projetos de arquitetos que estão trazendo uma qualidade luxuosa para os espaços públicos.
Por exemplo, em Porto Príncipe, capital do Haiti, o escritório de arquitetura Emergent Vernacular Architecture (EVA Studio) projetou um anfiteatro em colaboração com os moradores locais após o terremoto de 2010.
O espaço resultante é uma série de círculos concêntricos com espaços para sentar, jardins e equipamentos de ginástica.
De acordo com Galilee, “não é uma abordagem do espaço público voltada para o comércio, é uma abordagem do espaço público voltada para a comunidade”.
Enquanto isso, no Japão, a companhia Seibu Railway convidou Kazuyo Sejima — “um dos mais importantes arquitetos vivos” — para projetar um vagão de trem.
O trem tem janelas enormes para aproximar os passageiros das paisagens que passam e foi projetado para “mostrar o advento da era digital nos transportes”.
A instalação multimídia ‘Intimate Strangers’, de Andrés Jaque, explora os relacionamentos e o urbanismo — Foto: Andrés Jaque/Office For Political Innovation via BBC
Assim como as estradas e ferrovias outrora definiram as paisagens do futuro, hoje os sistemas de dados alteram dramaticamente nossas vidas: como nos movemos, nos comunicamos e até mesmo como acendemos as luzes.
Artistas, arquitetos e pesquisadores como James Bridle, Kate Crawford, Vladan Joler e Andrés Jaque analisam cuidadosamente esses sistemas para que possamos entender melhor como funcionam, como estão moldando nossas sociedades e a que custo.
Bridle, por exemplo, pesquisou a pegada de carbono de nossos serviços de internet aparentemente na nuvem, e o projeto multimídia Intimate Strangers, de Jaque, reformulou de forma convincente o aplicativo de relacionamento Grindr como uma forma de urbanismo.
Já Anatomy of an AI System (“Anatomia de um Sistema de Inteligência Artificial”, em tradução literal), de Kate Crawford e Vladan Joler, é um estudo microscópico de como um assistente virtual como a Alexa, da Amazon, é produzido, tornando visível o trabalho humano necessário para produzir aquela voz que ecoa na sua sala de estar.
‘In the Robot Skies’, do cineasta Liam Young, aborda a inteligência artificial e as cidades — Foto: Liam Young via BBC
Encontrando o humano no pós-humano
Sistemas de dados cada vez mais inteligentes significam que alguns edifícios são projetados e até mesmo ocupados sem humanos em mente.
Os trabalhos criativos do artista Cao Fei e do designer/cineasta Liam Young instigam o público a refletir sobre como essas mudanças vão afetar nossas vidas: como vivemos e trabalhamos e até mesmo como passamos o tempo uns com os outros.
Para Galilee, “a ficcionalização dessas coisas é uma forma suave de abordar questões muito problemáticas”.
Nossos corpos também são projetados
“Não estamos apenas mudando nosso ambiente, nosso ambiente está nos mudando”, diz Galilee, explicando a inclusão no livro de obras do escritório de arquitetura SO-IL, de Nova York, e da “arquiteta corporal” Lucy McRae .
O filme de McRae, The Institute of Isolation, imagina como podemos treinar nossos corpos para sobreviver em ambientes de outro mundo, enquanto a performance L’air pour l’air, do SO-IL, apresenta os artistas vestindo estruturas leves como extensões de seus próprios corpos.
Os projetos destes profissionais nos levam a refletir sobre como nossos corpos interagem com nossos ambientes, um tema oportuno na era da pandemia de covid-19.
O filme de Lucy McRae, ‘The Institute of Isolation’, imagina como podemos viver em ambientes de outro mundo — Foto: Daniel Gower via BBC
Novos imaginários
Parte de projetar um futuro melhor é desenhar novas maneiras de ver o mundo. A ficção criativa e a fantasia podem produzir mundos que desejamos ver e fornecer inspiração para como chegar a eles.
Everything, um game de simulação projetado pelo designer David O’Reilly, vai além dos limites da imaginação ao permitir que os jogadores assumam o papel de quase tudo no universo — de bactérias a ursos e galáxias — em uma tentativa de mudar nossas percepções sobre outras formas de vida.
“Como você se entende como produto de tudo?”, questiona Galilee.
“Você não pode se desconectar da calçada, das árvores, dos insetos. Todos nós trabalhamos juntos e esse é o ecossistema em que vivemos. Todos os projetos do livro tentam chamar a atenção para isso. A arquitetura é uma coisa entre outras, uma coisa que está interconectada.”