Crônica Dia dos Pais III

Pai de meu pai

Por Fabrício Carpinejar

 

Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a
ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.

É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa.
Lento, vagaroso, impreciso.

É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem coo se levantar sozinho.

É quando aquele pai,outrora firme e intransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da
respiração para sair de seu lugar.

É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme,
só procura onde é a porta e onde é a janela – tudo é corredor, tudo é longe.

É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador fracassa ao tirar sua própria roupa
e não lembrará de seus remédios.

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que
somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de
nossa vida para morrer em paz.

Todo filho é pai da morte de seu pai. Ou, quem sabe, velhice do pai e da mãe
seja curiosamente nossa última gravidez.

Nosso último ensinamento.

Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas,
de retribuir o amor com a amizade da escolta.

E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês,
tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis
para criar os nossos pais.

Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.

Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.
A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.

Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos
de nossos protetores.

Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.
A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes.
Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.

Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos,
envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.

Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e
desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores,
engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoeceriamm e precisariam da gente?

Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol,
nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.

E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho
que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.

Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.
No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca,
buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:
– Deixa que eu ajudo.
Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.
Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.
Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer:
pequeno, enrugado, frágil, tremendo.

Ficou segurando u bom tempo, um tempo equivalente à sua infância,
um tempo equivalente à sua adolescência,
um bom tempo, um tempo interminável.
Embalou o pai de um lado para o outro.
Aninhou o pai.
Acalmou o pai.
E apenas dizia, surrando:
– Estou aqui, estou aqui, pai!

O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.

 

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